No dia dois de abril de 2019, eram necessários 3,85 unidades da moeda brasileira – ou seja, R$3,85 – para adquirir uma única unidade monetária dos Estados Unidos. De lá pra cá muita coisa mudou.
Acompanhamos o Brexit, vimos os Estados Unidos insurgir contra a China emplacando uma guerra comercial relevante, vimos a taxa de juros no Brasil cair ao menor nível da história, enchentes, vírus, quase uma terceira guerra mundial e, claro, vimos a nossa moeda perder 36,3% do seu valor frente ao dólar americano. Tudo isso em um único ano!
Por que tudo isso aconteceu? É uma situação estrutural nova ou se trata de um elemento conjuntural? No ano que vem nós falaremos de dólar a mais de R$5 com certo alívio de quem viu a sua moeda ganhar vigorosa força em relação às demais moedas?
Acompanhe!
Entenda o porquê da desvalorização do real (internacional)
O que mudou em um único ano que fez com que a moeda brasileira perdesse tanto valor, sobretudo nos últimos três meses?
Primeiro embate: a guerra comercial entre Estados Unidos e China
Primeiramente, nós não podemos perder de vista a guerra comercial entre China e Estados Unidos. Em vigor desde o primeiro semestre de 2018 o desentendimento comercial entre China e Estados Unidos parecia se resolver em 2019, puro achismo!
O tão esperado acordo entre os dois países foi, na verdade, a primeira de uma série de assinaturas até o cessar-fogo definitivo, que nós acreditamos, não virá tão cedo.
Esse impasse entre Trump e Xi Jinping alimentou a aversão ao risco, o clima de esperança que se consolidava em uma noite qualquer desvanecia na manhã subsequente com algum tweet do presidente dos Estados Unidos renovando as ameaças.
Às vezes, não era nem preciso abrir as redes sociais para saber que o dia seria duríssimo, para a moeda brasileira. A imposição de tarifas de parte a parte trazia mais desvalorização do real à medida em que os indicadores econômicos da Europa vinham chegando. Vimos a degradação do setor industrial da Alemanha, maior economia da União Europeia e quarta maior economia do mundo.
A própria China, protagonista da guerra comercial, viu o desempenho da sua economia cair ao menor nível de crescimento em quase trinta anos.
Início de 2020: conclusão do Brexit, conflitos no Oriente Médio
O começo de 2020 marcou o fim de uma longa saga, que ajudou na desvalorização do real. Três anos e meio, foi o tempo necessário para findar o processo de saída do Reino Unido da União Europeia, o famigerado Brexit. Entre muitas idas e vindas, assassinato, eleições, moções de desconfiança e outras obstruções políticas, o parlamento inglês finalmente outorgou o referendo e o Reino Unido deixou a União Europeia em 31 de janeiro último.
Não pretendo me alongar muito, mas como aconteceram outros tantos problemas a sequência deste parágrafo serve para lembrá-los de outros eventos que colaboraram para a desvalorização do real. Guerra iminente entre Estados Unidos e Irã após o assassinato do comandante Qasem Soleimani; desentendimento entre Arábia Saudita e Rússia em relação ao volume de petróleo produzido; e agora, o golpe final, a propagação do novo coronavírus cuja infecção passou a ser chamada de Covid-19. Ah, não se esqueçam da crise argentina.
Geopolítica versus problemas domésticos
Você deve estar se perguntando; a desvalorização então é fruto do acaso? Estamos entregues à sorte da geopolítica global? Sim e não, caro leitor!
Sim, porque é impossível passar incólume pela guerra comercial, Brexit e desaceleração das economias chinesa e alemã, guerras iminentes e um vírus que se propaga tão rápido que colocou em xeque as maiores e melhores estruturas de saúde do mundo.
E não, porque existem elementos domésticos que foram fundamentais para pavimentar o caminho para a desvalorização do real.
Razões da desvalorização na economia brasileira
Em 2019 a situação girava em torno da capacidade do governo aprovar as reformas estruturantes tão aguardadas pelo mercado.
A primeira e mais importante era a reforma da previdência, cuja aprovação atravessou longas discussões, debates, protestos e desidratações. A cada derrota do poder executivo, uma nova rodada de valorização do dólar. Isso envolveu erros de cálculo da equipe técnica, desidratação do texto original e alinhamento de expectativas.
A reforma da previdência foi tão falada que a percepção é que sua aprovação colocaria uma pá de cal no parco crescimento brasileiro, o que, por razões óbvias não aconteceu, nem acontecerá. A reforma não é um fim em si mesmo.
Uma pequena escalada no preço do barril do petróleo no mercado internacional trouxe à tona a percepção do presidente brasileiro em relação ao funcionamento do mercado. Diante da possível ameaça de uma nova greve dos caminhoneiros, o presidente brasileiro falou publicamente que poderia congelar o preço do diesel nas bombas dos postos.
Por falar em petróleo, o clima de euforia quase morreu por completo quando o governo federal realizou um leilão de alguns poços do pré-sal. O governo conseguiu menos da metade do volume anunciado, sem nenhum ágio, e graças a Petrobras. Para alguns, esse foi o sinal de alerta de que as perspectivas não eram as melhores possíveis em relação ao futuro do Brasil.
As inúmeras crises causadas por membros da família do presidente colocaram em xeque a saúde das relações diplomáticas do Brasil com a China, Argentina e Alemanha, por exemplo.
Se cristalizou a percepção de que o teto de gastos e a política explícita de diminuição da participação do estado na economia, a qualquer custo, não poderia ter outro resultado além da manutenção dos crescimentos próximos de 1% dos últimos anos.
Por fim, os juros nominais são os mais baixos da história do país e isso contribuiu de forma significativa para a fuga de dólares do Brasil.
Esse conjunto de muitas coisas transformou-se na tempestade perfeita e agora será difícil se desvencilhar disso tudo.
Para além da COVID-19: o que ainda pode afetar o valor do real?
A propagação do novo coronavírus tende a desestabilizar ainda mais o sistema econômico global e isso deve continuar pressionando o valor da moeda brasileira.
Os Estados Unidos registraram os maiores números de novos pedidos de seguro-desemprego da história. Em duas semanas 10 milhões de cidadãos estadunidenses perderam seus empregos, quadro que deve continuar agudo nas próximas semanas.
Esperamos aqui no Brasil, além do gravíssimo problema de saúde pública, outras crises que reverberarão a partir desta primeira, mais grave.
A outra crise é a política, o presidente do Brasil continua apostando que a propagação do vírus no Brasil não será tão grave e que tudo isso é histeria coletiva da oposição. Passada a crise da Covid-19, espero que logo, teremos muitos desdobramentos acerca deste tema. Aqui cabe lembrar que estabilidade cambial e instabilidade política não combinam.
A terceira onda virá da deterioração das contas públicas. Diferentemente do que aconteceu em 2008, na crise do subprime, o Brasil chegou a esta crise sem condições financeiras de enfrentá-la. O quadro fiscal que já era grave – havia expectativa de superávit primário positivo apenas em 2026 – ficará ainda pior e isso deve trazer algum desequilíbrio cambial lá na frente.
Como isso tudo afeta a nossa vida?
O Brasil é carente de muitos insumos e matérias primas que são demandadas por aqui. Parte significativa do que se consome no país vem de muito longe.
Na distribuição de tarefas globais, o Brasil ficou com a de produzir bens primários e serviços de menor complexidade. A situação só não é pior em decorrência da própria crise.
A falta de demanda tem ajudado a controlar a inflação e assim deve permanecer nos próximos dias. Mas como assim, controlar? A fraqueza da demanda tem obrigado empresários a comprimir suas margens para tentar manter o volume de vendas em um patamar minimamente sustentável.
Ocorre que, margens apertadas por muito tempo criam pressões políticas que são difíceis de contornar. Então, além do possível aumento do custo de vida, esse é um problema que se retroalimenta. Mais crise política é mais desvalorização e menos emprego.
Veremos!
Confira a cotação em tempo real para o dólar e as principais moedas do mercado.